sábado, 18 de janeiro de 2014

Caranguejola


- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira -
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

                                                                                       Paris - novembro 1915 



Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos
Edição Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2001

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Colóquio de amor

- Então é assim: eu estou numa paragem de autocarro, do outro lado da rua. Estou à espera do autocarro, que é aquilo que um homem faz quando está numa paragem de autocarro. Sei perfeitamente que na há autocarros a passar por esta paragem; mas se na há autocarros, porque é que há-de haver uma paragem? Então tenho de esperar por qualquer coisa. E espero que chegue a noite. O problema é que a noite já chegou há muito tempo, chegou mesmo antes de eu próprio chegar. “Olá”, disse eu à noite, quando aqui cheguei. “Olá”, disse-me ela. Mas não foi a noite que eu encontrei aqui. Foi a treva. A treva é diferente da noite porque a noite é escura, e a treva é escuridão total, é esse negro absoluto em que ninguém pode entrar porque, se entrar, não sabe como é que há-de sair. “Posso entrar”? Disse eu à treva. “Queres entrar”? Respondeu-me ela. E vi uma outra diferença entre a noite e a treva: a noite é baça, plácida, plástica. Posso moldá-la, que ela desfaz-se como o nevoeiro, quando andamos às voltas dentro dele. A treva é única, una, dura. Mas há uma outra coisa: a treva é um corpo. Sinto-o, quando avanço, e ele se cola a mim, puxando-me para dentro dele. Não sei se é homem, se é mulher. Por vezes, encontro a forma de uns seios; mas logo me perco, como se ela, ou ele, me fugisse, e não quisesse que, com o meu abraço, pudesse reconhecer se era ele, ou ela. Assim, aqui estou, nesta paragem de autocarro, dentro da treva, sem saber como sair da treva, sabendo apenas que há um autocarro que não há-de chegar nunca porque nesta paragem, já não passam autocarros. “Greve”? Perguntei eu a um ciclista que por aqui passou. “Todo o mundo está sempre em greve”, disse ele. “Quem”? Perguntei. Mas o ciclista já tinha pedalado para longe de mim. “Não ouço nada”, gritei-lhe. “Nada”! Respondeu-me o eco. Sentei-me no banco da paragem de autocarro. E à minha frente, do outro lado da rua, uma mulher olhava-me. Não sei como é que, no meio da treva, ela me conseguia olhar. Mas descobri o que se passava: ela olhava na minha direcção, como se não olhasse para ninguém. “Amas-me”? Gritei-lhe. “Ou não amas ninguém”? Era como se ela não ouvisse. Estava na mesa, com o café já frio em frente dela, e alguém sentou-se ao seu lado. Era alguém, mas até podia ser ninguém. De facto pensei, poderia ser o ciclista que deu a volta à rua, encostou a bicicleta no passeio, e entrou no café. “Não faças isso”, disse-lhe. Mas ele não ligou, como se ninguém lhe tivesse falado. “Tens a morte à tua frente”, murmurei, como se ela ainda pudesse ouvir.

Nuno Júdice

domingo, 10 de novembro de 2013

Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- Meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!


José Régio


Cosmocópula


I

Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras

II

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso da água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro.


Natália Correia

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O ideal do socialismo esquecido...



Será que um dia vamos perceber, claramente, a urgência da construção de uma sociedade ideal!? Onde as classes sociais vivam em harmonia?!... que encontrem interesses em comum, que estejam acima de qualquer exploração ou busca incessante pelo lucro, adoptem práticas sociais que primam pela felicidade, harmonia e cooperação para assim superar os problemas causados pela economia capitalista!
A terra é de quem a trabalha!
     Quanto custa um rico a um pais?... Miséria! Fome! Desespero!


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ainda ouço a voz desta mulher...


Naqueles primeiros dias de dezembro, um rumor angelical de asas vindo de longe agonizou-nos a alma; como quem trespassa a harmonia inteira do mundo… mas tu ouves essa voz vibrando-te e tudo em ti regressa como onda: os araçás da infância, as nêsperas, outra mulher cantando à janela… onde for o lugar disto tudo e a memória desse lugar, aí encontraremos a raiz exacta destas palavras: as lembranças que seguramos dentro!
Esta árvore, neste lugar, símbolo desta mulher, qual seiva de que a nossa vida se sustenta…
Esta é a mulher das nossas vidas! Agora damos-lhe outra vida... Enraizando o nosso Amor. (É apenas mais um símbolo que erguemos a partir dela - são tantos -)… aqui a nossa dor germinará em silêncio:
- A pensada emoção das coisas cria-nos a imagem desta mulher sentada e fixando-nos para lá do silêncio… mas que bela imagem! J



'Vó Teresa

Houve uma altura que me cansei de interrogar as razões do tempo e decidi que era melhor talvez voltar a chorar: recolhi-me e chorei! Mas por uma mulher tão perfeita, eu choro sem querer…
Talvez eu não saiba dizer como me doeu aos doze anos a sua partida… nesse tempo em que procurava o lugar onde melhor me situasse… sei hoje que desse tempo distante e perturbado guardo comigo o gosto de me ter deixado pelo peso dos dias que se passaram por mim, sem dar conta, nem pelas vozes que anunciavam tal prenúncio… Só sei que ela me deu a força com que enfrentei o tempo seguinte não menos perturbante que o dos meus doze anos... E era isto que eu queria dizer: aquela música que nós tocávamos ao piano: Ó vovó! Meu amor! Dá-me um beijo, por favor!...

A brevidade com que digo estas palavras tem em mim um peso de eternidade: quando eu olho para ela. Volto a interrogá-Lo… Só doze anos porquê? Sem querer invejar as minhas irmãs e os meus primos, mas só doze anos porquê?... Afinal, o que eu queria dizer, é que esta é a mulher da minha vida! E a vossa também, penso eu…